Este não é apenas um projeto, é um chamado aos trabalhadores e às trabalhadoras do serviço público e aos ativistas da educação popular para impulsionarmos um Cursinho Popular Preparatório ao Concurso Público Nacional Unificado. Uma iniciativa da Rede Emancipa e do Coletivo Sindical TLS, conjugando as forças do Movimento Social de Educação Popular e do Sindicalismo Combativo por equidade no acesso aos cargos do Serviço Público Federal.
O Concurso Público Nacional Unificado (CNU) vem chamando a atenção pela inovação no formato de realização do processo, com a inscrição às vagas por bloco temático e escolha do cargo por ordem de preferência, bem como um maior número de sedes para locais de prova. Isso é apresentado pelo Governo Federal como uma forma de aumentar a diversidade sociodemográfica e territorial dos servidores públicos, o que contribuiria para a representatividade da sociedade brasileira no Estado.
Os concursos públicos são um importante instrumento de democratização do acesso aos cargos do serviço público, garantindo que o ingresso seja baseado em critérios objetivos, como a qualificação profissional e o desempenho em provas e testes, valendo-se da transparência e da impessoalidade na seleção, deixando de lado fatores como parentesco, amizade ou influência política, como ocorria antes da redemocratização.
Esse mecanismo permite que pessoas de todas as origens e camadas sociais tenham a oportunidade de ingressar no serviço público, em tese, independentemente de sua condição financeira ou social. No entanto, quanto mais especializado é o concurso público, maior é a exigência aos candidatos do domínio de conhecimentos e habilidades que nem sempre estão disponíveis para todos, por isso, para garantir a plena democratização do acesso aos cargos do serviço público, são necessárias políticas públicas que atuem para a equidade.
Um avanço na promoção da diversidade no serviço público é a política afirmativa de reserva de vagas para pessoas com deficiência e pessoas negras, mas ainda insuficiente considerando os dados oficiais. De acordo com o Censo 2022, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 8,9% da população brasileira, ou 18,6 milhões de pessoas, têm algum tipo de deficiência. A Lei nº 8.112/1991 foi alterada para permitir até 20% de reserva de vagas para PcD, entretanto, o CNU prevê somente 5% das vagas para este público.
Da mesma forma, a população negra representa 56,1% dos brasileiros, mas a reserva de vagas para esse grupo foi de apenas 20% do total das vagas no CNU. Deve ser ressaltado que o Sistema Integrado de Administração de Pessoal (SIAPE), em 2023, apontou 35,09% de pessoas negras dentre os servidores públicos ativos do executivo federal, o que torna inevitável avaliar, mesmo que empiricamente, o impacto positivo da Lei de Cotas, pois em 2000 as pessoas negras representavam apenas 17% dos servidores federais.
Outros grupos cujas políticas públicas são essenciais para promover a inclusão em processos como o CNU e foram invisibilizados são indígenas e pessoas transgêneras. O número de indígenas residentes no Brasil era de 1.693.535 pessoas, o que representava 0,83% da população total do país, conforme a divulgação oficial do Censo de 2022. Sem dados oficiais recentes, a estimativa é de que cerca de 1,9% da população adulta brasileira, ou aproximadamente 4 milhões de pessoas, são transgênero ou não binárias, segundo levantamento de 2021 da Faculdade de Medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista (FMB/Unesp). Entretanto, contrariando o posicionamento público de autoridades do Governo Federal, o edital do CNU não confirmou a reserva de vagas. Apenas as vagas disponíveis para a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) possui a reserva de 30% para candidatos indígenas, uma vitória do Ministério dos Povos Indígenas ratificada pelo Decreto 11.839 de 21 de dezembro de 2023.
Uma das principais barreiras para a aprovação em concursos públicos é a necessidade de conciliar a preparação para os exames com o trabalho e outras responsabilidades, o que, no caso das mulheres, quase invariavelmente inclui os cuidados com a família. Consequência disso, expõe um estudo realizado pelo Fórum Nacional dos Servidores Federais (FONASEFE) em 2023, é que as mulheres representavam 44,3% do quadro de pessoal da base do FONASEFE, enquanto 35,7% eram mulheres na base do Fórum Nacional das Carreiras Típicas de Estado (FONACATE), que reúne as carreiras mais bem remuneradas do Serviço Público Federal (SPF).
Além disso, o dispêndio financeiro com cursos preparatórios ou materiais de estudo colocam condições ainda mais desiguais para a concorrência, refletindo a concentração de renda na população brasileira no acesso às carreiras melhor remuneradas. Ainda que não estejam incluídos no CNU, vale a comparação com o judiciário brasileiro, onde prevalecem os homens brancos. Conforme dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2023, as mulheres representavam 38,3% dos magistrados brasileiros e as pessoas negras apenas 19,2%.
Os salários do serviço público federal são, em média, 19% superiores aos da iniciativa privada, segundo aponta o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), com diferença maior para cargos de nível superior, que chegam a ser 25% mais altos no serviço público, adicionando-se o fator da estabilidade no emprego. Mesmo sem análises robustas sobre as motivações para ingresso, é evidente que numa economia da periferia do capitalismo essa vantagem remuneratória se torna motivação para amplos setores médios buscarem esses cargos, inclusive com mais chances de sucesso do que pessoas oriundas de frações menos abastadas, que competem a partir de bases educacionais menos qualificadas.
A partir dessa visão crítica, de que o sistema de concursos públicos atual é elitista e excludente, pontuando alguns avanços e os limites para uma verdadeira democracia no acesso aos cargos do serviço público, nos propomos a impulsionar um projeto de educação popular na preparação para concursos públicos. Com base na participação, na autonomia e na emancipação, vemos potencialidades para apoiarmos o desenvolvimento de competências cognitivas, socioemocionais e críticas, além da construção de redes de apoio, estudo e preparação ao CNU.
Os mesmos fatores que tornam o acesso à universidade pública elitizado estão presentes nas seleções para o ingresso no serviço público. A disparidade das condições no acesso à educação básica e superior de qualidade são as mesmas barreiras que impedem a ascensão social via concursos públicos. O curto prazo para preparação, a ausência de cursos preparatórios disponíveis de forma gratuita e universal, também são determinantes nas condições desiguais para a aprovação.
Por sua vez, o movimento sindical no Serviço Público Federal tem cristalizado burocracias sindicais longevas, tanto em razão do corte geracional, quanto pela redução de ingressos com a descentralização de atribuições para estados e municípios. O acesso a concursos públicos pode levar a um aumento da diversidade das direções sindicais, com a participação de mais mulheres, negros e negras e pessoas de origens socioeconômicas mais baixas, isto é, novas perspectivas e vivências da classe trabalhadora.
Por isso, nesse projeto queremos combinar o poder da educação popular com o sindicalismo combativo, buscando nos quadros conscientes da sua classe social no serviço público e nas diversas expressões de ativistas da educação popular, o suporte para impulsionarmos um Cursinho Popular Preparatório ao CNU, uma caminhada que não termina na classificação final, mas que pode avançar para disputarmos condições equânimes de acesso ao serviço público, ou seja, partindo do projeto individual de aprovação do CNU para avançarmos na construção de um projeto coletivo de equidade no acesso aos cargos do SPF.